sábado, 20 de novembro de 2010

Dia da Consciência Negra!

Dia 20 de novembro, dia da consciência negra, me lembrei de uma história que ocorreu comigo no primeiro ano em que estava em Belém. Pra quem não sabe, eu nasci em Belém, mas morei muitos anos em uma cidade do interior do estado, Igarapé-Miri, e voltei a morar na capital quando passei no vestibular para história em 1996.
Na época não tinha onde morar. Inicialmente fiquei na casa de uma namorada, depois fui pro bairro do Jurunas, periferia da cidade, para uma vila na Rua Osvaldo de Caldas Brito. Uma vila muito simples, toda de madeira, de casas coladas umas às outras. Na verdade eram pequenos quartos sem banheiro interno (o banheiro era externo e coletivo).
A maior parte das pessoas que morava lá era de uma mesma família. Eram muitos garotos e garotas, adolescentes, vários tios e tias, pais e mães... Uma típica vila de família pobre da periferia de Belém, nas quais de acordo com o aumento do numero de pessoas os quintais vão se tornando novas casinhas para filhos, netos, sobrinhos, irmãos, etc.
Boa parte dos garotos e meninas vivia pelas ruas do bairro, eu era o único universitário da vila. Conversava com todo mundo normalmente, mas meu grupo mais íntimo acabava sendo meus novos amigos da universidade. Ouvia-se falar de pequenos assaltos, furtos, uso de drogas por parte destes garotos. Para muitos da redondeza, lá não passava de uma vila de “marginais”. Numa cidade de maioria mestiça de índios com negros, índios com negros e brancos caboclos, etc. aquela vila era uma vila de negros, de pessoas de cor.
Possivelmente minha mãe e eu seríamos os únicos não negros. Minha mãe, apesar de ser cabocla interiorana, é muito clara, o que a faz ser vista pela maior parte das pessoas como “branca”. Eu sou mestiço de caboclo amazônida e cearense. Tenho a pele morena clara (aquilo que o IBGE chama de “pardo” – não me perguntem o que é isso!), com visíveis traços indígenas no rosto, mas que naquele contexto também era visto como “branco” pelas pessoas da vila ou da redondeza (claro que considerando que ideologicamente as pessoas pouco se definem como negros ou índios em nossa região – preferem ser chamadas de “morenos” ou algo do tipo).
Certa feita estava no meu quartinho, minha mãe havia saído pra algum lugar, e de repente escutei uma barulheira danada. Gritos, pancadaria e tiros. A polícia havia invadido a vila com toda força. Bateu em quem encontrou pela frente, não perguntou quem era ou não era supostamente criminoso, espancaram mulheres e até mesmo um senhor cadeirante, que não tinha a menor chance de defesa.
No meio do tiroteio, correria e pancadaria a única coisa que pensei foi me esconder dentro de casa, pra evitar levar uma bala perdida (na verdade bala achada) na cabeça. E lá fiquei. Minutos depois as coisas se acalmaram um pouquinho, mas a polícia ainda estava por lá. Então resolvi sair e voltar só quando a poeira tivesse baixado. Pensei: como vou sair, será que os caras vão me “baculejar”, vão perguntar alguma coisa?
Criei coragem, coloquei uma roupa de “pessoa de bem” (ou seja, uma roupa que mostrasse que eu não era um garoto da rua, pelos padrões do preconceito normal da sociedade e da polícia) e sai.
Passei na frente do policial que estava com a arma em punho. Ele me olhou, eu olhei pra ele, pedi licença e sai. O policial não perguntou nada, não me revistou, não fez nada.
Daí me veio a seguinte pergunta: será que seu eu fosse uma pessoa visivelmente negra e estivesse vestido com roupas que são identificadas pelo preconceito vigente como roupas de marginais em Belém, não teria sido preso ou levado porrada como aconteceu com os demais moradores da vila? (essa questão das roupas é um elemento à parte: a maioria dos ditos “marginais” adolescentes de Belém se vestem com um tipo particular de moda: shorts de surfistas, bonés, camisetas com imagens e desenhos vivos, etc.)
Bom, a resposta todos já sabem...
Mesmo que eu não fosse o padrão de beleza Rede Globo (muito pelo contrário, sou um caboclo, cara redonda, cabeça chata, indígena, amazônico e pobre!), naquele contexto, numa favela, de maioria negra, o preconceito racial me atingiu muito menos do que aos outros moradores. À eles o ódio racista e o preconceito de classe se manifestou na violência policial de forma aberta! Para polícia tratava-se de marginais, bando de vagabundos, negros e negras pobres e inúteis na sociedade, pobres por opção de malandragem...
Nossa sociedade é sim, obviamente, claramente, objetivamente racista. E o racismo se reforça com o preconceito de classe, preconceito contra os pobres de uma maneira geral.
Muitas vezes discordei de amigos meus que fazem parte do Movimento Negro, por considerar que às vezes eles esquecem, ou dão pouca ênfase, à questão do preconceito de classe. Para mim não é uma questão de ser o preconceito racial menor que o de classe, ou vice-versa. Pra mim é exatamente um processo complexo de auto-alimentação de preconceitos, de racismo, de xenofobia (por exemplo, no caso de nordestinos em São Paulo), homofobia (tantos caso em evidencia na mídia nos últimos dias), machismo, etc. Mas é certo que o preconceito racial (em particular contra negros) é muito forte e merece uma atenção especial e uma organização especial dos movimentos sociais. Neste sentido o Movimento Negro e toda a sociedade têm que denunciar sempre, mas também têm que estar atentos as peculiaridades locais.
Não tenho certeza, mas, parece que naquele dia o preconceito racial falou mais alto que o preconceito contra pobres (não ser visivelmente negro para os padrões belenenses e da polícia) e isso me safou da pancadaria geral. Isso mostra que o preconceito racial é muito vivo, é objetivo, é claro e deve ser combatido. Obviamente que naquele contexto eu não poderia argumentar com a polícia, sedenta de bater em quem aparecesse pela frente. O melhor que pude fazer, acredito eu, foi sair do lugar até as coisas se acalmarem...
Porém, outra questão deve ser considerada no contexto paraense e belemense, em particular. Aqui há não só um preconceito no sentido de atitude ativa de agressão a um determinado grupo racial ou étnico, há também uma atitude de invisibilidade a determinados grupos. E neste caso refiro-me especificamente á grande maioria da população que é mestiça, em várias perspectivas, mas trás a marca do ser indígena no rosto. A grande maioria da população de Belém é indígena em sentido biológico, e fruto de um complexo processo de mistura com negros, brancos, nordestinos de vários momentos migratórios, etc, etc. Grosso modo, nas periferias da cidade são índios que vemos todos os dias. Eles são os vendedores de rua, os cobradores de ônibus, os garotos de esquina, os estudantes de escola pública, os flanelinhas, os vendedores do Ver-O-Peso, os produtores e consumidores da cultura “brega” que toma a cidade, os moradores do Jurunas, do Guamá, da Condor, da Cremação, da Terra Firme e de tantos outros bairros periféricos de Belém, das cidades do interior, etc.
Em Belém e no Pará o preconceito racial contra negros se confunde com o preconceito contra a população mestiça de fortes características indígenas e soma-se tudo isso à condição social de pobreza e exclusão.
A invisibilidade da população indígena se manifesta primeiramente no seu não reconhecimento enquanto habitante das cidades e da periferia. Quem se define como descendente de índio em Belém, mesmo que como descendente mestiço, distante das aldeias obviamente?
Em segundo lugar essa invisibilidade se manifesta na visão folclórica da cultura local: diz-se que nossa comida, nossos costumes, nossas danças e músicas são de origem indígena (o que são de fato, em grande parte); cultuam-se os ribeirinhos, os canoeiros, os plantadores e consumidores de açaí, o caboclo, mas ninguém se auto-define como tal, ninguém se auto-define como caboclo ou descendente de índios. O culto ao caboclo (que seria o herdeiro direto do índio) ocorre apenas nos discursos políticos populistas locais, de acordo com as necessidades de votos a cada dois anos. E também entre alguns defensores do folclore, que é sempre visto como algo do passado, em extinção, exótico e, portanto não vivo e ativo.
A nossa cultura sempre é vista como a cultura passada, morta, que precisa ser salva e, conseqüentemente, o índio que teria gerado tudo isso, é também um personagem folclórico, morto, cultuado pelo presente, que é distante dele. Não é à-toa que a população urbana tem um afastamento histórico com as comunidades indígenas, que se auto-definem como tal, nas aldeias e reservas.
São as nuances do preconceito racial em nossa região. Ele é mais complexo do que se imagina, mas independentemente disso é real, objetivo, e atingem os pobres, negros, mestiços, índios e caboclos todos os dias, a toda hora!

Um comentário:

  1. queria comentar algo, pois acho que seu texto, suas ações e os sentimentos que descreve aqui dialogam com as angústias de tod@s nós que buscamos entender e/ou construir a protagonização de nossa história. Nós, tão periféricos e das periferias do capital,mas tão centrais para o desenvolvimento desse mundo (de classes) que acentua nossas diferenças pelo preconceito, desagrega e divide nossas lutas como se nossa diversidade de cultura(s) contrariasse nossa história em comum. obrigada por somar e não dividir sua experiência!

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