Costuma-se dizer que a cultura local é extremamente rica. É de fato o é. A cultura paraense ou amazônica, como costumamos dizer, é extremamente rica e diversa. Não precisamos de grande esforço pra citar dezenas de manifestações de nossa região conhecidas e reconhecidas como elemento de nossa riqueza cultural. Basta falarmos no carimbó, por exemplo, largamente festejado por amplos setores da sociedade paraense e que agora busca seu reconhecimento com patrimônio imaterial do Brasil.
Mas hoje não pretendo falar sobre elementos da cultura local já bastante conhecidos e festejados. Gostaria de falar de outros elementos não tão laureados assim. Tomemos como exemplo alguns elementos da cultura urbana de nossa capital, Belém. Afinal como sabemos cultura popular não se restringe à produção rural, mas também a tudo que é produzido pelo “popular”. E já que existe esse “popular” nas cidades grandes também, logicamente, a cultura popular está lá presente.
Um dos elementos da cultura popular urbana que tem mais me chamado a atenção nos últimos dias, decorrente de minha morada em um bairro da periferia de Belém, é o habito da “queimada de casas”.
Este hábito caracteristicamente periférico é muito apreciado em bairros como o Jurunas, a Cremação, a Condor, o Guamá, a Terra Firme, o Telegrafo, a Sacramenta, e demais bairros marginais das proximidades da Av. Augusto Montenegro, chegando ao outros da região metropolitana de Belém, elem de outras cidades do estado e da região.
A queimada de casas consiste no seguinte ritual. Permitam-me ensaiar uma breve etnografia do rito, tal como gostam muito de fazer os antropólogos e demais cientistas sociais, quando estão próximo ao exótico:
a) Primeiro existe condições muito precárias de existência e moradia. Casa de madeira de segunda ou de terceira, feitas com muito sacrifício pelos moradores. Geralmente são casas pequenas e pouco ventiladas. Muitas delas são extremamente quentes devido estarem muito coladas umas as outras. Isso decorre do fato de que estas casas são feitas em terrenos muito pequenos. Às vezes um mesmo terreno de 15, 20 ou 30 metros é ocupado por várias famílias. A família principal de pai, mãe e filhos fica na frente e os numerosos filhos e filhas mais velhos com suas respectivas esposas ou esposos e também numerosos filhos, ficam em casas que ocupam o que fora noutr’ora um quintal. Isso quando existe quintal, pois quando se trata de ocupações mais recentes – “invasões” como são conhecidas pela imprensa! – os terrenos são sempre menores ainda e quase não sobra espaço algum a não ser o da própria casa. Outra característica é o terreno alagado ou alagadiço destas habitações. São geralmente as áreas menos nobres da cidade que foram ocupadas, e, tendo em vista as características geográficas de Belém com seus igapós, são áreas que enchem no inverno e ficam empoeiradas no verão.
b) Segundo, existe pobreza. O que acarreta, entre as milhares de coisas possíveis, instalações elétricas mal feitas, pais que trabalham o dia todo e deixam crianças sozinhas em casa, ou mesmo famílias apenas com a mãe e vários filhos – isto é, “mães solteiras” que além de criarem os filhos sozinha têm que trabalhar fora e deixá-los em casa ou na rua mesmo. Considere-se que o “nativo” destas regiões da cidade costumam ter mais filhos do que nos setores médios e esclarecidos das urbes.
c) Em terceiro lugar temos que considerar a existência de um clima muito quente em nossa região. E o longo período de sol a pico, devido à proximidade com a linha do equador. Nestas condições o “nativo” fica entre a cruz e a espada. Na parte mais chuvosa do ano tem que viver com os alagamentos, da sua casa ou na melhor das hipóteses pelo menos o alagamento da sua rua, e no verão como já dissemos, tem que viver com o calor e com a poeira das ruas de terra.
Ao caro leitor, devemos informar que estamos fazendo uso aqui de um “tipo ideal”, tal como gostam de fazer os cientistas sociais em suas análises dos fenômenos sociais. Obviamente que há exceções a este quadro que retratamos acima, mas de uma maneira geral ele pinta com cores cinza a realidade da maior parte dos moradores de periferia de Belém e de outras cidades da região.
d) Somando-se este conjunto de características da cultura cabocla periférica urbana – digo cultura cabocla, pois a maior parte dos nativos destas áreas são mestiços de índios, negros e brancos pobres das mais diversas origens, ou como diria Caetano Veloso: são todos quase pretos, quase pobres, e, no nosso caso, quase índios! Voltaremos a este tema em outro momento. Mas como dizia, somando-se este conjunto de características culturais, aos quais obviamente todos nós paraense e amazônidas devemos nos orgulhar, temos finalmente o hábito da queimada de casas – hábito que obviamente já faz parte de nossa cultura popular urbana e por isso mesmo dever se amplamente divulgada.
Esta ocorre da seguinte maneira. Por um motivo qualquer ocorre um estopim. Pode ser uma fiação elétrica mal feita que estourasse, pode ser um ventilador empoeirado super aquecido, um ferro de passar roupa esquecido devido ao cansaço do dia duro de trabalho, uma criança brincando com fogo – enquanto a mãe trabalhava ou algo do tipo. Seja como for ocorre o estopim e a casa - na maioria das vezes de madeira, dado um costume local e/ou a falta de grana pra comprar tijolos – começa a pegar fogo.
Ai começa a correria. As mulheres gritam chorando. Os populares tentam salvar a geladeira, a televisão – obviamente ninguém quer perder a novela das 8! – se salva aquele dinheirinho guardado da venda de cosméticos, o material de manicure e pedicuro, as roupas do dia-a-dia. Claro, se salva também as crianças e as pessoas que estejam em casa! Infelizmente às vezes o ritual chega a acontecimentos trágicos, quando alguma criança ou adulto não consegue sair a tempo e é consumido pelo fogo junto com a casa.
O fogo obviamente consome a tudo rapidamente. Considere-se anda que faz parte desta cultura o fato de que o corpo de bombeiros chega com dificuldade às ruas, geralmente estreitas, e muitas vezes com bastante atraso. E algumas vezes ainda sem água suficiente nos seus carros-pipa para apagar o incêndio. As casas de madeira em período de pouca chuva e muito calor viram rapidamente uma grande fogueira que ilumina o bairro todo. Os populares chegam pra assistir o espetáculo. Alguns participam tentando salvar alguma coisa. Outros participam tentado “levar” alguma coisa no meio da confusão. Outros ficam penas gritando, chorando, rindo ou lamentando. Muitos lembram de outras queimadas e falam que uma determinada foi muito maior que a outra e coisas do tipo. Os mais caridosos consolam os moradores da casa e já começam a se mobilizar com vizinhos e patrões para conseguir comprar madeira ou tijolos. Tentar arrumar comida e roupas usadas. No outro dia já começam a chegar a ajuda de vários lugares.
A imprensa também aparece pra retratar a cena. Falam que as famílias ficaram sem nada. Muitas vezes apenas com a roupa do corpo. Dizem ainda que não seja possível precisar a causa do incêndio e que o corpo de bombeiros só poderá dar um laudo definitivo depois de 30 dias. A repórter comovida apela para a caridade dos outros e dá um número de um telefone para que as pessoas possam ajudar. Depois de algum tempo não se fala no assunto. Até que outro bairro apresente uma nova queima de casas – coisa que como já disse é muito mais rico nos subúrbios da cidade. Por vezes o prefeito promete ajuda – às vezes ajuda mesmo, às vezes não!
Se considerarmos que a cultura popular é aquilo que é produzido pelo “povo” ou pelo menos junto ao “povo”, é de estranhar que os folcloristas, os produtores culturais, os secretários de turismo e de cultura, os antropólogos e historiadores da cultura, e mesmo o IPHAM ou outros órgãos parecidos ainda não tenham se dedicado ao tombamento desta prática cultural. Poderíamos lutar para que as queimas de casas fossem, quem sabe, elevadas à condição de patrimônio imaterial da cultura paraense, e até mesmo da cultura brasileira – já que isso ocorre também, ao que parece, em outros lugares do Brasil, é verdade que aqui com suas características próprias. Digo patrimônio imaterial, pois é de se considerar que de material mesmo sobra muito pouco depois de um incêndio. A não ser que queiramos fazer um museu de cinzas e carvões e claro!
Talvez a exemplo do que ocorre em outros estados do Brasil, como o Rio e Janeiro, pudéssemos até organizar safares urbanos. Lá na favela da rocinha é comum vermos jipes e carros que lembram aqueles veículos que trafegam pela savana africana, repletos de gringos vestidos de bermudas de arqueólogos, jaquetas de fotógrafos e munidos de modernas maquinas fotográficas registrando tudo o que ocorre no morro. Alguns, por mais perigosos que possa parecer até fazem contato como os nativos verificam seus hábitos alimentares, sua música exótica e outras coisas. Temos um potencial aqui que ainda não colocamos em ação. Safares nas palafitas incendiadas de Belém, até mesmo para mostrar que não temos aqui só floresta.
Seja como for é estranho ainda que mesmo a simples etnografia disto não tenha sido realizada por aqueles que vivem a falar bem da cultura popular da região, vangloriando-se da cultura ribeirinha, do carimbó, do açaí, do tacacá, da maniçoba, do Círio de Nazaré, etc. Nem mesmo os músicos que cantam aos quatro cantos do mundo a cultura regional ainda não trataram disso. Bom nunca é bom lembrar que é importante sempre falar bem de nossa cultura popular, mas me estranha que um ritual da cultura popular tão rico e comum na periferia de nossas cidades não tenha sido sequer retratado.
Faço eu então o papel de desbravador das nossas coisas, mas lembrando o que dizia Walter Benjamin, que toda cultura sempre representa um documento da barbárie...
Mto extenso o texto! Se fosse menor eu lia!]
ResponderExcluirhehehe
Abs